Posto de saúde, escola para as crianças e os adolescentes, água potável, tratamento de esgoto, um meio ambiente saudável e a liberdade de manter seus costumes tradicionais e sua economia sustentada pela pesca artesanal e coleta de caranguejos e outros crustáceos.
É isso o que desejam as comunidades de Campo Grande, Barra Nova Norte, Barra Nova Sul, Urussuquara e Barra Seca, que formam um belo território de povos tradicionais da pesca artesanal e do manguezal, além das comunidades do entorno, como São Miguel, Gameleira, Nativo, Ferrugem, Ponta e Ilha Preta, em São Mateus, no litoral norte do Estado.
A região está na área de influência do Petrocity, empreendimento portuário bilionário que há sete anos trava uma luta política para vender seu projeto, classificado como tecnicamente inviável pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), que por duas vezes seguidas indeferiu o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima).
As pautas são essenciais à qualidade de vida, mas historicamente negligenciadas pelo poder público, governo após governo. A elas, somam-se o pleno reconhecimento e indenização como atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, visto que, passados mais de quatro anos do maior crime socioambiental do país, poucos são os moradores que conseguiram.
Direitos inegociáveis das comunidades, essas pautas estão sendo usadas como moeda de barganha para impor a aceitação do novo porto. Enviada ao Ministério Público Federal (MPF), a lista de necessidades foi mencionada nas audiências públicas realizadas pelo empreendimento, no último trimestre de 2019.
Também do PSB, a pré-candidata Elisângela Cristina, a Preta, é assessora do senador Marcos do Val (Podemos), e tem atuado com seu chefe junto aos poderes locais e federais, em busca de abertura política dos caminhos para a empreitada.
No último dia 12 de maio, o Petrocity teve autorização de instalação concedida pelo ministro da Infraestrutura, Tarcisio Gomes de Freitas. A próxima etapa é conseguir a federalização do licenciamento ambiental no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), autarquia vinculada à pasta de Ricardo Salles, que destacou-se na reunião de ministros do Jair Bolsonaro (sem partido) no dia 22 de abril, em cujo vídeo, vazado nas redes sociais, afirmou que a pandemia de Covid-19 é uma oportunidade para aprovar as mudanças necessárias na legislação ambiental para “passar a boiada” sobre a floresta Amazônica.
No Iema, o requerimento de licença ambiental da Petrocity foi indeferido por duas vezes, em fevereiro e em dezembro de 2019. Em janeiro último, a empresa solicitou pedido de reconsideração e revisão da decisão de indeferimento, a partir de uma complementação do EIA. Em abril, porém, o órgão manteve o indeferimento, “visto que o pedido revisional entregue não apresentou fatos relevantes a ser considerados e não caberia nessa fase complementação”, informou a Assessoria de Comunicação. Agora, a única possibilidade, na esfera estadual, é apelar ao Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), cujos conselheiros foram eleitos em fevereiro, mas ainda não tomaram posse, devido à pandemia.
Acuados
Isolados fisicamente pela pandemia, as comunidades, que possuem precário acesso à telefonia e internet, se veem acuadas. “Antes de todos esses impactos, dessa tragédia de cinco anos atrás, de Petrobras, de Transpetro, de TNC [Terminal Norte Capixaba], de óleo vindo do Nordeste, de Samarco… se fosse antes, eu seria contra a Petrocity. Hoje, eu sou a favor e a comunidade é a favor. Porque a Samarco destruiu tudo, não tem pesca nem caranguejo. Então hoje seria bom pra gerar emprego. Minha filha tem pós-graduação, meu filho tem pós-graduação. E o que adianta? A comunidade é a favor. Tem que ocupar a mente do pessoal. Vai viver de cesta básica? De Bolsa Família? Fazer o quê? Instala essa indústria!”
O desabafo é do senhor Adeci de Sena, presidente da Associação de Pescadores, Catadores de Caranguejo, Aquicultores, Moradores e Assemelhados de Campo Grande de Barra Nova/São Mateus-ES (Apescama), entidade criada em 2001 para defender os direitos da comunidade como povo tradicional do manguezal.
“Esse rejeito lá em Mariana, não vai parar nunca de vir. Quando vem o vento sul, desce o rejeito todo pra cá. Aqui a gente está no meio de três bocas de barra: Urussuquara, Barra Nova e Conceição da Barra. O rejeito vem de Minas Gerais pelo Rio Doce, sai em Regência, de lá toca pro norte pelo mar, e entra pelas bocas de barra, entra tudo dentro do manguezal, tá acumulando tudo lá. Não vai acabar isso nunca, não desceu nem 25% do volume de rejeito de lá pra cá”, descreve.
“A comunidade quer a Petrocity, mesmo sabendo que vai trazer problema. Mas, mais problema que a gente já tem? Nossa saúde está destruída pela Samarco. Fizemos exames com a USP [Universidade de São Paulo], tá todo mundo contaminado”, lamenta.
De fato, a destruição do manguezal pela lama de rejeitos começou há quatro anos e só se intensifica, à medida que mais rejeito continua a aportar no estuário. Por conta disso, a contaminação dos moradores por metais pesados só aumenta, tendo sido verificada por um estudo da Universidade de São Paulo (USP), que encontrou arsênio e outros contaminantes perigosos em 99% das amostras de unha e cabelo coletadas de quase 298 moradores.
Outrora uma próspera comunidade tradicional , vivendo com abundância de alimento, cultura e saúde, Campo Grande e suas vizinhas hoje sofrem com doenças advindas do crime da Samarco, sem água potável (o abastecimento é feito por carros-pipas, pois a água antes captada em poços caseiros também está contaminada com arsênio e outros metais da lama de rejeitos), sem saneamento básico, sem escola (funciona precariamente em uma casa alugada na comunidade), sem posto de saúde (funciona em duas salas cedidas pela Apescama) e sem seu modo de subsistência tradicional.
Em Nota de Repúdio à autorização dada pelo Ministério da Infraestrutura, a Campanha Nem Um Poço a Mais ressalta a inversão de prioridades, defendendo as pautas socioambientais e econômicas das comunidades nos campos da saúde, moradia, saneamento, renda mínima, produção e distribuição de alimentos.
As organizações que realizam a campanha também listam os já conhecidos impactos que acompanham empreendimento portuários e petroleiros: remoção violenta de famílias que vivem no entorno do empreendimento; criação de áreas de exclusão da pesca artesanal, praias, mangues e restingas; destruição do pescado e mariscos, e contaminação dos ecossistemas costeiros; excessiva demanda por água e energia; violência contra as mulheres, com a chegada de muitos homens de fora para a construção; raros e precários empregos para a população local são realmente gerados depois da instalação; a farsa dos projetos de compensação que sempre retardam e nunca compensam; pressão sobre os equipamentos de saúde e segurança nas cidades e vilas; novas doenças que chegam com os que vêm de fora.